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quarta-feira, 13 de outubro de 2010

QUAL O INTERESSE DA EUROPA EM ESTABELECER UM “ACORDO DE MOBILIDADE” COM CABO VERDE

Historicamente a Europa foi um continente com excedente populacional. Até o início da Segunda Grande Guerra, mais de 50 milhões de pessoas deixaram o território europeu para se estabelecerem nas promissoras terras do novo continente. Actualmente, essa mesma Europa que no passado “exportou excedente populacional”, atravessa uma crise demográfica sem precedentes. Segundo o resultado de um estudo do Instituto Europeu de Estatística, o Eurostat, a população dita europeia, não apenas estagnou em termos de crescimento, como está a envelhecer rapidamente. Estima-se que em 2050 um terço da população terá idade superior a 65 anos. A Europa corre assim o risco de, a longo prazo, se transformar num lar de terceira idade. O referido instituto calcula que em 2015 a taxa de mortalidade deverá ultrapassar a da natalidade, estando na imigração a única solução para o problema de decréscimo populacional. O fenómeno de envelhecimento da população agravado pela taxa negativa de crescimento demográfico terá, com certeza, implicações nefastas na produtividade, no desenvolvimento económico e em todo o potencial de crescimento da Europa. Por conseguinte, para continuar próspera e a competir com os Estados Unidos e com os países emergentes, a União Europeia não só precisa de mão-de-obra jovem e qualificada como também necessita de “braços” para suprir as necessidades sobretudo nas áreas em que o europeu não está disposto a aceitar o emprego.

Vinte milhões de trabalhadores qualificados é o número apontado pelo Eurostat como sendo necessário para colmatar as necessidades de mão-de-obra no espaço da comunidade nos próximos anos, e a imigração afigura-se como a única solução possível. Entretanto, a problemática da imigração não se coloca de modo pacífico. Ciosa da sua identidade nacional, a Europa teme que uma avalanche de imigrantes contribua para uma nova composição étnica e cultural, pondo em risco, a longo prazo, a identidade típica do velho continente. Interessa-lhe por isso controlar os fluxos migratórios e acolher quem efectivamente preencher determinados requisitos particularmente em termos de qualificação profissional. Efectivamente, existem milhões de pessoas que almejam chegar a Europa mas nem sempre os que querem lá chegar (como os que se aventuram em canoas pelo atlântico) são os que a Europa deseja receber.

Franco Frattini, Vice-Presidente da Comissão Europeia surgiu então com uma iniciativa interessante, e que foi bem acolhida pelos seus interlocutores: a criação de um “Cartão Azul” que permite a entrada da necessária mão-de-obra por um tempo limitado, regressando, no término de um contrato de trabalho, ao seu pais de origem. Sem a possibilidade de fixação definitiva, o que implicaria a deslocação de toda a família, o imigrante não irá, por exemplo, sobrecarregar a demanda por serviços públicos tais como educação, saúde, entre outros, como também fica precavida a possibilidade de uma indesejada miscegenação a longo prazo da população europeia.

Um dado assente é que a Europa precisa de mão-de-obra, mas não quer que a mesma se estabeleça definitivamente no seu espaço sobretudo porque essa necessidade de “braços” em certos países da União revela-se de caracter sazonal, entre outros aspectos a ter em conta. A fixação definitiva poderá também contribuir para o agravamento da problemática da integração social dos “antigos” imigrantes e seus descendentes que a Europa já vem enfrentando. No período pós Segunda Guerra Mundial, teriam sido bem-vindos para ajudar na reconstrução da Europa. Entretanto a ausência de uma política de inserção social fez com que os imigrantes e seus descendentes, em determinados países, acabassem abandonados à sua sorte em guetos e bairros suburbanos, chegando-se ao absurdo de apesar dos filhos nascerem no espaço europeu e de nunca sequer terem pisado a terra de origem dos pais, as autoridades não lhes reconhecem a nacionalidade europeia. Esta é a realidade de milhões de jovens descendentes de imigrantes que nasceram (e vivem) na Europa. Sem a nacionalidade do país de nascimento naturalmente não gozam da mesma oportunidade seja no sistema de ensino, seja no mercado de trabalho. Situação frustrante que nos ajuda a melhor compreender a onda de violência e distúrbio social que assolou a França em Outubro de 2005 em que centenas de veículos e vários estabelecimentos comerciais foram violentamente incendiados e vandalizados em várias cidades. Essa constatação desencoraja a Europa a acolher em caracter definitivo uma nova leva de imigrantes como aconteceu no período pós 1945.

Sem uma perspectiva de crescimento demográfico a longo prazo, a União Europeia busca encontrar soluções além fronteira para o seu mercado de trabalho, sem contudo suportar o peso da fixação definitiva no seu território do imigrante e respectivo descendente. É nesta conjuntura que se pode compreender a assinatura em Junho deste ano de uma “Declaração conjunta sobre a parceria para a mobilidade” entre a União Europeia e Cabo Verde, abrindo assim a possibilidade de estabelecimento de acordos com cada país membro da UE individualmente de modo a permitir o controle de fluxos migratórios legais no âmbito de uma política de emigração circular. A França foi o primeiro país a manifestar interesse no estabelecimento de tal acordo, com a assinatura do acordo no passado 24 de Novembro em Paris pelas autoridades dos dois países. Com efeito, idêntica iniciativa foi também levada a cabo com relação a Moldava, uma ex-Republica soviética. Trata-se por conseguinte de um projecto de grande envergadura da União Europeia, em que esses dois países foram escolhidos nessa fase de arranque, para uma espécie de “ensaio de laboratório”.

Para Cabo Verde representa uma excelente oportunidade de exportação de mão-de-obra, mas também incorpora um desafio ao sistema de ensino e formação técnico-profissional para se poder tirar proveito dessa oportunidade. O ensino técnico actualmente bastante limitado em Cabo Verde (apenas 3% do universo dos alunos frequentam esse tipo de ensino) necessita por conseguinte de um grande impulso para se transformar numa alternativa ao contingente de jovens que por alguma razão abandona ou não completa o ensino geral. Os recursos para financiamento podem advir da UE no âmbito do acordo de Parceria Especial. Ora, a Europa necessita de mão-de-obra para se manter próspera e competitiva, contudo não quer que a mesma se estabeleça definitivamente no seu território, então é justo que ao menos contribua para sua qualificação no pais de origem. De contrario, mais dispendiosa será a árdua missão de patrulhar as águas do atlântico na tentativa ingrata de esbarrar as canoas abarrotadas de miseráveis que se aventuram rumo ao velho continente.

Publicado no Liberal em 08/12/2008
http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=21599&idSeccao=527&Action=noticia

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